sábado, 9 de junho de 2012

Cansei de ser bonzinho

Cansei de ser bonzinho. Sou compreensível demais, pacífico ao extremo, conciliador para todos os problemas, mas o que eu ganho com tudo isso? Nada. Pelo menos não aqui na Terra. Pode ser que em um plano superior ao que vivemos eu possa estar acumulando alguma riqueza (espero), mas o que tenho recebido ultimamente é uma série de problemas e uma avalanche de insultos e incompreensões. Por isso mesmo resolvi: cansei de ser bonzinho.

Acordei com esta convicção e resolvi segui-la. Como levanto muito cedo, a primeira coisa que fiz foi pôr uma música bem alta pra poder aumentar meu astral. Nada de preocupação se os vizinhos estão dormindo. Eles que tapem os ouvidos. Afinal de contas, quase todos os dias sou obrigado a ouvir o arrastar de móveis até altas horas da noite ou logo cedo nos finais de semana. Isto sem falar naquele barulho irritante do salto alto batendo no piso. E ainda tem as noites de amor empolgantes em que fico ouvindo grunhidos e sussurros enquanto estou na solidão do meu quarto. Mas parece que minha atitude não atrapalhou ninguém, pois apesar do som alto, ninguém ligou para reclamar.

O dia ia seguindo. Logo na saída, a simpática velhinha do 301 me cumprimenta com aquele sorriso constante e irritante dela.

- Bom dia, meu filho!

- Só se for para a senhora. – Bufo! (ela não merecia, mas estava convicto da ideia)

Percebi que ela tomou um susto. E foi se encaminhando vagarosamente pelo corredor estreito que leva ao elevador.

- Dá licença que estou atrasado! – falo meio que empurrando a velhinha do meu caminho.

Um sorriso meio sarcástico toma conta do meu rosto. Antes de sair do condomínio, mais uma maldade. Chego na saída e o porteiro que sempre me tratou muito bem demora a abrir o portão. Não penso duas vezes. Baixo o vidro e grito:

- Oh, meu filho! Vai abrir esse negócio hoje? Estou atrasado. Emprego não tá fácil assim não, principalmente para profissionais com pouca instrução como você.

- Calma, estou indo. Me perdoe!

- Abre logo isso e para de conversar! – resmunguei enquanto começava a buzinar intermitentemente.

No caminho até o trabalho, mais atitudes más como dirigir ameaçando os motoristas que teimam em andar lentos na faixa de ultrapassagem, acelerando quando o sinal abre só pra ver o pedestre que ainda está no meio da faixa correr desesperadamente, jogando papel pela janela e, como não poderia deixar de ser, estacionando na vaga de idoso. Por que eles têm mais direito que eu mesmo? Pago a mesma quantidade de impostos que qualquer um. E não sonego nenhum (sonegação é uma boa ideia para essa nova fase).

Na repartição, nada de sorrisos ou favores. Cara trancada! Afinal sou pago para mandar e não para ficar distribuindo simpatia. Deixo isso para a moça da recepção que tem de atender bem a todos aqueles clientes chatos.

Resolvi chegar um pouco mais cedo para observar o horário da chegada dos meus amigos (seriam mesmo amigos?) de sala. O primeiro que chega quase meia hora depois do início do expediente, vem com um sorriso aberto dizendo:

- Olá, bom dia! Que surpresa agradável você logo cedo por aqui!

- Bom dia, não né? Boa tarde! Por que o atraso?

- Que é isso, chefe? Tá com raiva?

- Não interessa a você como está o meu humor. Agora me interessa saber o motivo pelo qual o senhor está chegando atrasado.

- Mas foi só meia hora. Eu posso compensar depois.

- Aham, tá certo. Pois sente logo aí que temos muito o que fazer hoje!

E assim foi com todos. Nada de muita compreensão sobre atrasos ou serviços ainda não entregues. Sempre tive a impressão de que por nunca ter levantado a voz para ninguém, jamais ter soltado um palavrão que expressasse realmente o que estou sentindo, as pessoas iam me fazendo de otário.

- Ah, ele é gente boa demais! Compreensivo, sempre sorrindo. É ótimo trabalhar com ele.

- Aham, sei! Pra mim soava mais como: ele é um otário. Pode deixar que ele faz o serviço da gente. Vamos sair mais cedo que o Mané fica aí trabalhando!

Fazia de tudo. Quem não quer um colega de trabalho assim? Estava na hora de deixar de ser assim. O que eu ganhava com isso? Mais trabalho, somente...

E fui assim durante todo o dia. O “gente boa” saiu de campo e entrou o carrasco. Aquele que manda, jamais pede. Agora eu seria respeitado pelo cargo que exerço, não por quem sou. Não dava mais pra viver daquela maneira. Foi o que pensei. Pelo menos até chegar em casa...

O porteiro com o qual eu discuti pela manhã abriu ao portão antes mesmo que eu falasse algo ou esboçasse qualquer tentativa de buzinar. Mesmo sem baixar os vidros, percebi que ele fez questão de acenar e gritar.

- Boa noite!

Subindo as escadas, encontro o vizinho barulhento que mora no apartamento logo acima do meu. Já me preparava para falar umas poucas e boas pra ele quando...

- O senhor é o vizinho que mora logo abaixo do meu apartamento, né?

- Sim sou eu, por quê? (Sabia que ele ia reclamar do som!)

- É que hoje pela manhã o senhor colocou uma música bem alta e foi a única coisa que acalmou o meu filho recém-nascido que insiste em passar a noite em claro. Depois que ele escutou, bem cedo, fechou os olhinhos e dormiu como um anjo. Vim agradecer ao senhor e perguntar se o senhor poderia me emprestar o CD com aquelas canções.

- Mas, mas...

- Só se não for incomodar...

- Tá bom! Vamos ao meu apartamento que eu te entrego.

- Quero aproveitar e pedir desculpas ao senhor.

- Pelo quê?

- Como o Rafaelzinho não dorme direito, às vezes a gente passa a noite fazendo barulho, andando pela casa com ele no colo para fazer com que ele durma. Já fui vizinho de baixo e sei como isso incomoda.

- É verdade, mas...

- Mas a verdade é que agora, graças ao senhor, arranjamos algo para acalmar o nosso pequeno. Muito obrigado!

Mesmo tentando ser ruim a gente acaba acertando. Mas nem tudo estava perdido. Foi só me aproximar do meu apartamento que lá estava a D. Nonô de novo no corredor andando vagarosamente. Era minha chance de terminar o dia com uma maldadezinha. Antes que eu me aproximasse dela, a velhinha virou-se e disse.

- Oh, meu filho! Boa noite. Vi que você não estava muito bem hoje pela manhã e passei a tarde fazendo esse bolo de batata que sei que tanto gosta. É só pra adoçar um pouco o seu dia.

Não pude resistir e acabei abraçando a velhinha e convidando-a para comer bolo com café no meu apartamento. Rimos bastante e ela foi pra casa vagarosamente como sempre, mas com um sorriso enorme no rosto.

- Espero que amanhã você tenha um dia bem melhor que o de hoje. – disse a minha simpática e vagarosa vizinha.

Mal fechei a porta, recebo uma mensagem no meu celular. “Oi, chefe! Saindo agora do trabalho para compensar o atraso. Sei que o motivo não interessa, mas é que pela manhã tinha ido ao supermercado com minha avó e uma pessoa havia estacionado o carro na vaga de idosos. Tivemos de rodar um pouco até encontrarmos outra vaga e a gente acaba perdendo tempo, pois as vagas de idosos estão próximas das saídas pelo simples motivo de que uma pessoa mais velha tem dificuldades de se locomover. Engraçado que o carro era até parecido com o do senhor, mas nem pensei duas vezes antes de dizer para a vovó: ‘Meu chefe respeita tanto as pessoas que jamais faria algo como o que este imbecil fez’. Se for necessário, amanhã compenso mais. Me desculpa!”

Putz! O “imbecil”era eu mesmo! E como fui um idiota o dia todo. Pra que isso?

Hoje descobri que praticar o bem, não é fazer algo bom somente para os outros. É fazer bem a si mesmo. Não adianta querer fazer algo ruim para alguém se mais que estar magoando ao outro, eu estarei me machucando. É cansei mesmo de ser bonzinho, mas estou disposto a superar o cansaço.