-Não fala nada e me beija!
Dificilmente minha campainha toca. Somente quando recebo as raras visitas da minha irmã - pois o meu sobrinho acha legal o barulho que faz - , ou quando algum vizinho vem pedir algo emprestado.
- Você teria um pouquinho de açúcar para me emprestar? Esqueci de comprar. – pediu um dia desses um vizinho que jamais havia me dado um "bom dia".
Fiquei feliz em adoçar a vida dele.
Mas voltemos. Tomei um susto. Sempre a achei muito bonita, atraente, era fácil perceber quando ela ia trabalhar pelo cheiro do seu perfume inconfundível que tomava conta do corredor. O sorriso sempre foi tímido e avassalador, daqueles que se recebidos de manhã cedo levam consigo todo o mau humor matinal.
Dia desses, o silêncio ensurdecedor da madrugada foi quebrado por um choro contido de alguém perguntando:
- Por quê? Só me diz o motivo?
Não sei o que havia acontecido, mas era a voz dela. A mesma voz cujos barulhos estranhos ditos em uma noite de amor eu já ouvira.
- Não para, não para!
Parei! E imaginei como seria...
Por isso quando a campainha tocou naquele dia, no momento em que a vi na minha porta, realmente fiquei assustado.
- Oi!
- Não fala nada e me beija!
- Como assim?
- Só me beija!
Me puxou pela cintura, mão postada na minha nuca e o lábio doce e quente tocou o meu.
Fiquei atordoado com o ataque. Era meio de semana, preparava o meu almoço, enquanto o rádio sintonizado em um noticiário da AM me trazia as principais notícias do dia. Acho que foi a primeira vez que tive uma experiência sexual ouvindo notícia.
Após o beijo na porta de casa, o empurrão pra dentro. Porta fechada com o calcanhar e a sentença repetida.
- Não fala nada. Só me beija!
Depois que recobramos a consciência. Roupas espalhadas por todos os cômodos da casa, ela deitada com a cabeça sobre o meu peito, com os dedos passeando suavemente sobre meu ombro e rosto, até que...
- Seu arroz!
- É a primeira vez que alguém me chama assim!
- Não é isso! O seu arroz que estava cozinhando, tá sentindo o cheiro de queimado?
- Putz, esqueci!
Saí do quarto enrolado no lençol para desligar o fogão. Não só o arroz como todo o resto ia virar lixo.
Fui rápido, mas quando retornei ao quarto ela já estava de pé.
- Preciso ir!
- Como assim?
- Não me pergunte nada. Deixa eu ir!
- Me diz pelo menos o teu nome.
- 704.
- Hã?
- Moro no 704. Este é o meu nome pra você!
Vestiu-se, agradeceu e foi embora com a mesma frase.
- Não fala nada e me beija!
Não entendi! E até agora nem sei se quero entender. Só sei que a campainha nunca mais tocou do mesmo jeito. Não nos cruzamos mais no corredor e dia desses vi uma placa de “vende-se” em frente ao prédio. Assustado, perguntei ao porteiro.
- Quem está vendendo o apartamento?
- Rapaz, é aquela gostosona do 704.
- Hum, sei!
Não apareceu, não nos falamos mais, a única certeza era a dúvida. Mas, espera... A campainha tá tocando...
- Bom dia! O senhor poderia me emprestar o ferro de engomar?
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