quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

704

-Não fala nada e me beija!

Dificilmente minha campainha toca. Somente quando recebo as raras visitas da minha irmã -  pois o meu sobrinho acha legal o barulho que faz - , ou quando algum vizinho vem pedir algo emprestado.

- Você teria um pouquinho de açúcar para me emprestar? Esqueci de comprar. – pediu um dia desses um vizinho que jamais havia me dado um "bom dia".

Fiquei feliz em adoçar a vida dele.

Mas voltemos. Tomei um susto. Sempre a achei muito bonita, atraente, era fácil perceber quando ela ia trabalhar pelo cheiro do seu perfume inconfundível que tomava conta do corredor. O sorriso sempre foi tímido e avassalador, daqueles que se recebidos de manhã cedo levam consigo todo o mau humor matinal.

Dia desses, o silêncio ensurdecedor da madrugada foi quebrado por um choro contido de alguém perguntando:

- Por quê? Só me diz o motivo?

Não sei o que havia acontecido, mas era a voz dela. A mesma voz cujos barulhos estranhos ditos em uma noite de amor eu já ouvira.

- Não para, não para!

Parei! E imaginei como seria...

Por isso quando a campainha tocou naquele dia, no momento em que a vi na minha porta, realmente fiquei assustado.

- Oi!

- Não fala nada e me beija!

- Como assim?

- Só me beija!

Me puxou pela cintura, mão postada na minha nuca e o lábio doce e quente tocou o meu.

Fiquei atordoado com o ataque. Era meio de semana, preparava o meu almoço, enquanto o rádio sintonizado em um noticiário da AM me trazia as principais notícias do dia. Acho que foi a primeira vez que tive uma experiência sexual ouvindo notícia.

Após o beijo na porta de casa, o empurrão pra dentro. Porta fechada com o calcanhar e a sentença repetida.

- Não fala nada. Só me beija!

Depois que recobramos a consciência. Roupas espalhadas por todos os cômodos da casa, ela deitada com a cabeça sobre o meu peito, com os dedos passeando suavemente sobre meu ombro e rosto, até que...

- Seu arroz!

- É a primeira vez que alguém me chama assim!

- Não é isso! O seu arroz que estava cozinhando, tá sentindo o cheiro de queimado?

- Putz, esqueci!

Saí do quarto enrolado no lençol para desligar o fogão. Não só o arroz como todo o resto ia virar lixo.

Fui rápido, mas quando retornei ao quarto ela já estava de pé.

- Preciso ir!

- Como assim?

- Não me pergunte nada. Deixa eu ir!

- Me diz pelo menos o teu nome.

- 704.

- Hã?

- Moro no 704. Este é o meu nome pra você!

Vestiu-se, agradeceu e foi embora com a mesma frase.

- Não fala nada e me beija!

Não entendi! E até agora nem sei se quero entender. Só sei que a campainha nunca mais tocou do mesmo jeito. Não nos cruzamos mais no corredor e dia desses vi uma placa de “vende-se” em frente ao prédio. Assustado, perguntei ao porteiro.

- Quem está vendendo o apartamento?

- Rapaz, é aquela gostosona do 704.

- Hum, sei!

Não apareceu, não nos falamos mais, a única certeza era a dúvida. Mas, espera... A campainha tá tocando...

- Bom dia! O senhor poderia me emprestar o ferro de engomar?

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